segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A batalha pelo poder, na igreja




Encerramos o trimestre com o estudo da terceira epístola de João, um documento remetido de pessoa para pessoa; em outras palavras, uma carta. No feitio, ela se aproxima de outro documento neotestamentário, Filemon; e, na qualidade, ela se parece com outros três, primeira e segunda a Timóteo e Tito. O estilo segue de perto o padrão de escritos desse gênero no mundo romano daqueles dias: há uma saudação inicial com votos de saúde e prosperidade (v. 1, 2), e uma final com informações e cumprimentos pessoais e de terceiros (v. 13-15).


Embora essa epístola seja também um dos menores documentos do Novo Testamento (apenas 2 João é menor que ele), sua breve mensagem é de importância pelos traços de vida presentes na referência primeiramente a Gaio, em toda a epístola por ser o destinatário, então a Diótrefes, (v. 9, 10), uma personalidade distintamente oposta, e a Demétrio, (v. 12), seu provável portador.


A conclusão é feita com uma breve análise da crise de liderança nos primórdios do cristianismo, com os eventuais reflexos em nossos dias; a meu ver, essa é uma forma sábia de fecharmos um trimestre deveras abençoado por termos singrado águas joaninas.


O ancião e Gaio (3Jo 1:1-4, 13-15)


A chamada terceira epístola de João é, como acabamos de referir, uma carta pessoal, circunstancialmente enviada por ele a um de seus amigos chegados, Gaio, cristão autêntico e membro de uma das igrejas da comunidade pastoral do apóstolo. O nome Gaio era comum naquele tempo, tanto que o Novo Testamento registra outras personalidades assim identificadas (ver At 19:29; 20:4; Rm 16:23; e 1Co 1:14). Qualquer tentativa por associar o Gaio da presente epístola com um desses homônimos não passará de especulação.


As razões por que João prefere se apresentar como “ancião”, e não como apóstolo de Jesus, embora o título “apóstolo” aparentemente se prestasse melhor para um confronto com o abuso de poder exercido por Diótrefes, João falou com reconhecida autoridade apostólica. Infelizmente não sabemos dos eventos posteriores ao envio da carta e da visita planejada por João àquela igreja (v. 10, 14). Em que situação acabou ficando o líder prepotente? Teria ele se arrependido e tomado outro curso de ação? Continuou ele em seu comportamento anticristão, vindo posteriormente a ser disciplinado? E quanto àqueles que lhe davam cobertura? Só a eternidade nos revelará, mas o fato de esta carta ter sido preservada pode ser um sinal de que João foi bem-sucedido em seu propósito ao escrever e remeter 3º João.


O fato é que o título ancião, empregado por João, em nada lhe tirou a dignidade, mesmo porque este “título indica respeito e autoridade”, ligada, inclusive, à própria idade do missivista. Além disso, no caso de João, o título indicaria, mais que um líder local, um supervisor geral de igrejas, o ancião de anciãos, o ancião por excelência.


Além do mais, a autoridade de João não era advinda de títulos, ou coisa parecida; da mesma forma que ele, com o prestígio de alguém que conhecera Jesus pessoalmente e O seguira com lealdade total, combatera eficazmente as dissidências gnósticas que colocavam em risco a unidade e hegemonia das igrejas que conduzia, assim pôde ele agora agir com autoridade e firmeza para fazer face ao problema referido em 3º João.


Gaio e seu ministério à Igreja (3Jo 5-8)


Embora tão pastoral como a primeira e segunda epístolas, a terceira não trata de dois temas comuns às anteriores: a comunhão com Deus (salvo em termos de andar na verdade, o que ele toca de passagem no verso 3), e o trato com dissidentes e seu ensino. Não obstante, o propósito de João é, ao reverso, o mesmo da epístola anterior. Nesta, ele apela aos destinatários a não hospedarem os promotores do engano (lembrando-os de que, se o fizessem, estariam compactuando com o erro); agora ele apela a que recebam com carinho os agentes da verdade (na certeza de se tornarem cooperadores dela se assim procedessem).


Do Didachē, ou O ensino dos doze apóstolos (obra surgida em meados do segundo século), sabemos da existência, naqueles dias, de mestres itinerantes, cujo ensino poderia ou não condizer com a verdade; eles visitavam igrejas e os membros dessas igrejas se sentiam na obrigação de hospedá-los, mesmo porque o próprio Jesus, ao enviar os doze e os setenta discípulos a pregar, havia tocado esse ponto nas orientações a eles dadas (ver Mt 10:11-13; Lc 10:5-7).


João advertiu os membros a que não recebessem os mestres que contrariavam o ensino apostólico (2º Jo 10, 11), ao mesmo tempo em que deviam abrigar aqueles que o confirmavam e expandiam, principalmente se credenciados ou recomendados para esse mister.


Com esse fim em vista, ele elogiou Gaio, que, exercitando a hospitalidade com esses pregadores fiéis, evidenciava de maneira muito positiva o ato de andar na verdade; a conduta desse cristão correspondia com precisão ao que professava.


Gaio aparece em franco contraste com Diótrefes, um mau elemento que desdenhava a autoridade apostólica de João, não somente repelindo os mestres recomendados por ele (ou por seus associados), como instigando os membros da igreja, onde impunha o domínio, a fazer o mesmo.


A atitude de Gaio ilustra o fato de que nossas afirmações de fé só terão valor se forem refletidas em atos de afeto e abnegação.


Diótrefes (3Jo 9, 10)


João censura Diótrefes; além de revelar falta de hospitalidade e de se opor aos que queriam exercê-la, ele era insolente e despótico na liderança. Em outras palavras, a conduta não fraterna desse falso cristão era um opróbrio para a verdade. Nesta epístola portanto, João, lida com outro tipo de dissidência, a do poder.


Ocorria naquela igreja um caso de autopromoção; muito provavelmente a “liderança” desse membro-ditador não tivesse sido determinada pelo consenso da congregação, como deveria, mas através de recursos escusos utilizados por ele. O ex-padre Oscar, nosso querido irmão que hoje descansa no Senhor, costumava citar 3º João 9, e o fazia com razão, em referência à primeira tentativa, no cristianismo, pela implantação do episcopado monárquico, cuja culminação foi alcançada com o sistema papal de governo eclesiástico a partir do sexto século.


Outro detalhe: o apóstolo preferiu escrever a determinado membro da igreja, Gaio, e não à própria igreja, indubitavelmente por ser Diótrefes hostil a ele e também pelo tipo de autoridade que este impunha ali. Pela pressão que Diótrefes exercia sobre os membros, João sabia que, com toda a certeza, a carta, nem seria lida perante eles; estaria simplesmente enviando sua mensagem para o vazio. Aprendamos que a igreja ainda não é perfeita, e que falsos membros existem para testar a firmeza dos que se declaram fiéis. Aprendamos também que um membro assim sempre será motivo de prejuízo para o todo da congregação.

Gaio e Diótrefes – dois membros de igreja, duas vidas, duas qualidades de cristianismo! Esse pequeno documento provindo da pena inspirada de João se encontra na Palavra de Deus para que sintamos a dignidade de um e a vileza do outro, e sejamos incentivados a imitar o que é bom (v. 11).


Não esqueçamos de que a avidez pela grandeza e primazia, a sede, ou “batalha pelo poder”, empregando o título da lição, transformou um respeitável e perfeito querubim num demônio execrável e infeliz; tenhamos como certo que, toda vez que esse tipo de comportamento se manifestar na igreja, as consequências, para todos em geral e para o elemento em particular, serão por demais desastrosas.


Dando testemunho sobre Demétrio (3Jo 12)


João agora menciona um membro da igreja de seu domicílio, Demétrio (nome comum entre os gregos), fazendo dele uma referência positiva; ele era outro exemplo de firmeza na verdade. Crê-se que ele foi o portador da carta a Gaio, e é a este que o apóstolo o recomenda, não à igreja, pelo motivo óbvio de que, por influência de Diótrefes, ele não seria bem-vindo ali; da parte de Gaio, todavia, João tinha certeza de que Demétrio teria uma acolhida cordial.


Pouco foi falado desse fiel cristão. Demétrio é mencionado em apenas um verso da epístola, mas o que João disse foi mais que suficiente: ele mesmo o recomendava, bem como “todos”, o que pode indicar a congregação da qual Demétrio e o próprio João participavam, ou pessoas de fora, com quais se relacionava. Enfim, todos os que o conheciam.


Como é bonito o quadro de um cristão exemplar, que dá bom testemunho da fé que professa, que reúne qualidades, desperta admiração e goza de bom conceito e da estima de todos. Não é este o ideal de Deus para com cada um de Seus filhos, nesse mundo ímpio que, muito naturalmente, detesta a Deus e a tudo que é de Deus? A esse respeito, Pedro dá uma significativa admoestação: “... mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores [os cristãos, no império romano, eram tidos como marginais, inimigos da lei e da ordem], observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação” (1Pd 2:12).


Porém, o mais importante era que a própria verdade dava bom testemunho sobre Demétrio. Em outras palavras, ele era íntegro com ela; seguia-a à risca. Ou, então, João pode estar se referindo Àquele que é a verdade, o Senhor Jesus (Jo 14:6). Nesse caso, era o próprio Deus que assim estimava Demétrio, e isso é tudo, pois tem a ver com caráter. Com efeito, conceito e caráter, ambos nos envolvem; a diferença é que o primeiro prescreve o que as pessoas pensam e dizem de nós; mas o segundo é o que Deus vê em nós, e tem a ver com o que Ele pensa e diz a nosso respeito.


Crise de liderança no início da igreja


A crise no início da igreja não se limitou apenas à questão de liderança, como ficou demonstrado pelo Dr. Luiz Nunes ao elaborar sua dissertação doutoral e defendê-la com êxito em 23 de março de 1998, no UNASP, Campus de Engenheiro Coelho, SP. Ele fez um levantamento dos momentos delicados que o cristianismo viveu em seus primórdios, e que resultaram em pelo menos seis crises específicas: (1) de decepção (ou desapontamento), (2) missiológica, (3) cristológica, (4) soteriológica, (5) de autoridade e, finalmente, (6) escatológica.


O mais interessante do trabalho do Dr. Nunes é o paralelo que ele estabeleceu entre a igreja inicial e a igreja final: as crises da igreja apostólica recorrem na experiência dos adventistas do sétimo dia, evidentemente, dentro de um contexto próprio. Daí o título da obra: Crises na Igreja Apostólica e na Igreja Adventista do Sétimo Dia – Análise Comparativa e Implicações Missiológicas. O mais importante, todavia, é o fato de que da mesma forma que a igreja apostólica, mediante recursos divinos colocados à disposição dela face a situações emergenciais, soube superar as crises, os adventistas também o saberão se seguirem o mesmo caminho. O Dr. Nunes deixa bem claro as implicações a esse respeito.


Ingredientes das crises acima alistadas dosavam aquilo que estava ocorrendo nas igrejas da comunidade joanina no fim do primeiro século, segundo pudemos perceber através das três epístolas que estudamos durante este trimestre; mas, em especial, as crises de número (3), (4) e (5) se destacaram ali. Como os acontecimentos na igreja daquele fim de século ecoam na igreja neste final da História, recomendo, a leitura das páginas 24-45, e 71-99 do trabalho do Dr. Nunes. Ali há, sem dúvida, um bom material subsidiário para um estudo em conjunto mais aprofundado neste décimo terceiro sábado, da lição de hoje.


Apenas acrescentaria o seguinte: se algo há que pudemos sentir nitidamente no estudo dessas 13 lições é que a igreja de Deus, em todos esses séculos que medeiam os dois adventos de Jesus, continua sendo militante e, como tal, “débil e defeituosa, precisando ser repreendida, advertida e aconselhada”. Apesar de tudo, ela “é o único objeto na Terra ao qual Cristo confere Sua suprema consideração” (Ellen G. White, Testemunhos Para Ministros, p. 49). “Ele vela constantemente com solicitude por ela, e fortalece-a por Seu Espírito Santo” (Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 396).


Como houve dissidentes e luta de poder nas igrejas administradas por João naqueles dias, também agora dissidentes estão por aí, inclusive se empenhando por uma reforma administrativa da igreja. A onda do congregacionalismo, como a lição evoca, é uma evidência desse fato. “Isso existe hoje na ideia do congregacionalismo, em que as igrejas locais tentam ser completamente independentes de qualquer corpo eclesiástico-administrativo, e andar sozinhas. Esse não é o modelo do Novo Testamento.”


Afirmo com absoluta confiança que volver ao congregacionalismo seria um lamentável retrocesso que bloquearia a Igreja no cumprimento de sua missão mundial para que finalmente Cristo venha. É isso precisamente o que o diabo quer.


Se não, pergunto: Como vão as igrejas congregacionalistas hoje? Avançam no mundo como deveriam e poderiam avançar? E quais são as igrejas que se tornam cada vez mais mundiais, que mais crescem? Não são as que sustentam um sistema administrativo não congregacionalista?


Lembremos que a Igreja é propriedade do Senhor, e não nossa. Ele a tem nas mãos, e a está conduzindo. Não tentemos fazer o que é atribuição dEle, porque certamente o faremos equivocadamente. O que tem de ser consertado o será no tempo certo, do modo certo, e pela Pessoa certa.


“Vestida com a completa armadura de luz e justiça, entra a Igreja em seu conflito final” (Ellen G. White, Testemunhos Para Ministros, p. 17). Acredito plenamente nesta afirmação profética. Deus aparelhará a Igreja para o momento decisivo, e finalmente a exibirá vitoriosa no glorioso dia; e com ela todos os que forem achados fiéis.

Amém!



Autor: José Carlos Ramos – D. Min






Nenhum comentário:

Postar um comentário