segunda-feira, 30 de maio de 2011

As roupas novas do filho pródigo (comentário ao estudo nº 10)




Nesta semana estudamos a parábola que tem sido chamada de “o evangelho nos evangelhos”, em virtude da tamanha clareza com que o amor de Deus é pintado neste trecho da Bíblia. O relato tem inspirado a produção de sermões, cantatas, desenhos animados, livros e filmes. Mais do que isso, tem intrigado as mentes mais exigentes e tocado os corações mais resistentes.

Até mesmo parábolas contemporâneas foram elaboradas tendo como base a lição principal do relato de Lucas 15 (vou terminar esse comentário com uma história que ilustra isso). Dessa maneira, por mais que você tenha lido ou escutado essa história incontáveis vezes, ela não se esgota, a ponto de mais uma vez um novo aspecto do texto saltar diante dos seus olhos.

Introdução

A introdução da lição toca a necessidade de se experimentar a graça de Deus. Esse é um ponto importante para os adventistas do sétimo dia. Historicamente, nosso movimento teve dificuldades de relacionar a graça com a lei. A Assembleia da Associação Geral de 1888, em Minneapólis (EUA), é uma prova disso. Nessa época, Ellen G. White destacou: “
como um povo, pregamos a lei até nos tornarmos tão áridos como os montes de Gilboa que não tinham nem orvalho nem chuva” (Review and Herald, 11 de março de 1890). Essa data é tida como uma das mais importantes da história da denominação e George R. Knight chega a afirmar que nessa ocasião a Igreja Adventista foi “rebatizada”1.

É verdade que boa parte dos pioneiros tinha uma visão equilibrada sobre a lei e a graça, especialmente Ellen G. White2, mas o “ranço do legalismo” sempre existiu. Assim, penso que nossa fama de legalistas não é só responsabilidade dos nossos irmãos evangélicos – que acreditam equivocadamente que colocamos a guarda do sábado em substituição à fé em Cristo – mas é uma herança histórica, com a qual devemos nos policiar.3

De modo prático, a lição de sábado é uma advertência àqueles que vivem um cristianismo nominal ou meramente intelectual. Em tempos em que as instituições e a mensagem cristã enfrentam muito descrédito, principalmente por causa dos cristãos e de suas igrejas, a fé deve ser testemunhada mais por atos do que por palavras. Entendo que a humanidade não está resistente ao evangelho; está resistente à propaganda enganosa das religiões institucionalizadas que, por meio de suas estratégias proselitistas, oferecem o mais fantástico dos produtos, o cristianismo, mas não o entregam, porque deixaram de experimentá-lo.

Portanto, o clamor de nosso tempo é testemunhar o cristianismo autêntico, aquele que muda valores, prioridades e comportamentos; aquele que não aliena culturalmente seus fiéis, mas os torna mais social e ecologicamente responsáveis; aquele que transforma igrejas, de clubes sociais fechados em comunidades inclusivas e relevantes para seu contexto; aquele que inspira os fiéis a uma adoração contagiante e transformadora e que resgata nas famílias e congregações a intimidade e beleza dos relacionamentos.

O risco da liberdade 4

Escolhi fazer um comentário panorâmico, que contemplasse os principais pontos da lição, em vez de me deter à divisão do assunto adotada pelos autores. O estudo desta semana aborda primeiramente a questão do risco da liberdade. Não sou pai, mas a partir de comparações, vou tentar ilustrar esse princípio.

Depois de um tempo de graduado, parei para somar quanto minhas duas faculdades com pensionato haviam custado (sem levar em conta livros, estágios, viagens e outros). Levei um susto! Essa brincadeira deu em torno de 70 mil reais. Foram seis anos de investimento da minha família, nove férias dedicadas à colportagem e alguns anos como aluno-bolsita no colégio interno. Se nessa fase da minha vida eu já estava assumindo a independência financeira, imaginei o quanto eu tinha custado para meus pais até a maioridade. Acho que eles nunca pensaram nisso e penso que poucos pais, antes de ter seus filhos, colocam na ponta do lápis tudo que irão gastar com eles pelo resto da vida. Se o fazem, penso que isso não é um fator impeditivo para que realizem o sonho de ter filhos.

Com Deus, ocorre de maneira semelhante. Ao criar os anjos, seres que habitam os outros rincões do Universo e a humanidade, Ele não pôs na balança o risco da liberdade. Não porque fosse ingênuo ou não soubesse o futuro, mas por que criar faz parte de Sua natureza, e criar seres livres. Ao que parece, o pai da parábola deu a melhor educação possível aos filhos, porém, ambos se perderam: um dentro de casa e o outro fora. As reações foram diferentes, porque os filhos eram diferentes (como são diferentes todos os integrantes de uma família), mas ambos não usaram prudentemente a educação amorosa e coerente que receberam do mesmo pai.

No seu livro Decepcionados com Deus, o consagrado autor Philip Yancey, ilustra essa vulnerabilidade de quem ama5. Quando Yancey trata da encarnação de Jesus, na noite de Natal, ele diz que a divindade deu tremenda demonstração de amor naquela manjedoura em Belém. Cristo, Aquele que era eterno (Jo 1:1-3), que havia criado tudo, Se tornou uma frágil criança (Jo 1:14). O Senhor do Universo passou a depender de pais humanos para aquecê-Lo, alimentá-Lo, limpá-Lo e ensinar-Lhe as primeiras palavras e os primeiros passos. Em Belém, o Todo-poderoso Se fez frágil para salvar. Portanto, na parábola fica claro que Deus não Se vale de outros recursos além da liberdade e do amor. A liberdade pode ter um alto preço, mas é a única opção para um Deus justo e amoroso.

As intenções

Numa leitura superficial, por mais insensível que fosse o pedido do filho mais novo, a petição dele pelo menos parecia “justa”: o garoto estava pedindo algo que era dele, a metade da fazenda (v. 12). Porém, o verso seguinte já mostra as intenções rebeldes e imaturas do filho. Ele não tinha falado para o pai como usaria o dinheiro, mas assim que pôs a mão na grana, ajuntou tudo e foi para a cidade grande. Ele pegou todos os seus pertences e foi para longe. Isso mostra que ele não mais queria vínculos com o pai; queria distância. O verso 13 diz que ele desperdiçou seus bens, porque viveu dissolutamente. As duas expressões em destaque na frase anterior mostram que ele tinha rompido com seu passado, pensou apenas no presente e não fez provisões para seu futuro. Ele esbanjou seu dinheiro, tempo, força, valores e pureza: um retrato em cores vivas de nossa condição de afastamento de Deus.

Não demorou muito para que o filho ingrato se deparasse com duas desgraças. A primeira foi ficar sem nenhum tostão furado. Isso teria sido perfeitamente evitável, se ele tivesse economizado. A segunda desgraça foi a fome que assolou aquela terra e, com esse contratempo talvez ninguém contasse: foi inevitável. Diante dessa situação só lhe restou cuidar de porcos e, conforme o texto sugere, comer com eles. Para os ouvintes judeus, a mensagem era muito clara: ele havia chegado ao fundo do poço. Nada poderia ser mais repugnante do que isso. Nesse momento da parábola, a degradação era completa. O garoto estava na miséria, fisicamente debilitado, humilhado, com a autoestima e moral atrofiadas. Se o filho queria ficar distante do pai e não se parecer em nada com o garoto que foi criado no lar rico e aconchegante, ele conseguiu.

A verdadeira conversão

Na sarjeta, ele decidiu voltar para casa. À primeira vista, pode parecer que ele retornou apenas por necessidade: estava com fome. Bom, pensar assim é bem razoável, já que era optar entre voltar e viver, ou morrer por ali. Afinal, o filho se lembrou de que até os servos de seu pai viviam melhor do que ele. No entanto, foi mais do que uma necessidade física que o conduziu para os braços do pai. Quando o filho teve a oportunidade de dirigir as primeiras palavras ao velho fazendeiro, confessou que havia pecado contra ele e contra Deus (v. 21). Seu arrependimento não era pelas consequências, mas por algo mais profundo: pelo que tinha feito. As consequências o levaram a refletir sobre a intenção de suas ações; o relacionamento com o pai se havia rompido.

A partir dessa nova visão, o filho se sentiu indigno e disposto a aceitar qualquer condição para ser reintegrado. Entendeu que qualquer reação negativa do pai seria mais do que razoável. Essa é a marca do verdadeiro arrependimento: tristeza pelo que fez e não por ter sido pego. É como o mentiroso que se arrepende independentemente de ter sido desmascarado; como o ladrão que põe a mão na consciência independentemente de ser preso; ou como o promíscuo que abandona seu estilo de vida independentemente de ter se contaminado com uma doença venérea.

O filho reconheceu sua loucura e foi impelido a voltar por causa do amor do pai. Ao contrário da ovelha (Lc 15:3-7) e da dracma (Lc 15:8-10), o filho teve a consciência de que estava perdido. Ele é um símbolo daqueles que voluntariamente se afastam do Pai mesmo depois de terem experimentado Seu amor.

Que mudança de visão! No mais claro sentido, o filho mais novo passou por uma conversão, uma mudança de rumo. O mesmo pai que no passado lhe parecera autoritário e injusto, agora lhe parecia o ser mais amoroso do Universo. Pelo caminho da dor, o filho aprendeu as duas percepções possíveis sobre a lei de Deus: para os rebeldes, ela parece limitadora; mas para os obedientes, ela é protetora. Ao se iludir com a “liberdade”, o filho viu que poderia tê-la apenas onde pudesse também encontrar proteção: na casa do pai.

A reação do pai é espetacular, um ícone da postura de Deus em relação ao pecador. Diz a Bíblia que o pai enxergou o filho de longe. O tempo poderia ter passado, as roupas estavam gastas e o rosto sujo, mas esse pai não se havia esquecido do jeito de andar nem da fisionomia de seu filho. Antes que o rapaz terminasse de se explicar, o pai o abraçou. O que havia de melhor no pai se encontrou com o que havia de pior no filho: perfume x fedor; limpeza x sujeira; riqueza x sujeira; e dignidade x humilhação. O pai trocou as roupas do filho, deu-lhe um anel e sapatos, símbolos de que era um homem livre, não um escravo. Ele fez questão de não expor o filho, cobriu sua imundície, seu passado. As novas roupas deram ao filho um novo status; ele estava novamente identificado com o pai. A alegria do pai foi contagiante. Ele organizou uma festa. Mandou matar um novilho cevado, animal reservado para uma ocasião especial. O filho que estava morto reviveu!

O filho mais velho

Talvez tão trágica quanto a rebeldia inicial do filho mais novo, foi a reação final do filho mais velho. Quando ele voltou do trabalho e viu que a festa era para o irmão que havia desperdiçado tudo, ficou indignado (v. 28). Nem sequer entrou em casa. A alegria do filho mais velho não foi a mesma do pai. Ele nem considerou mais o pródigo como seu irmão: “
este teu filho” (v. 30). O amor do pai para com o filho que desperdiçou tudo no vício e com as prostitutas foi um insulto para ele. Sua linha de raciocínio parece justa: ele havia renunciado o prazer, trabalhara duro e nunca fora reconhecido. O pai nunca tinha matado um bezerro para comer com ele e seus amigos. Numa frase-chave, porém, o filho mais velho denunciou sua motivação: “todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens” (v. 29, NVI).

O filho mais velho não havia entendido o que era ser filho. Ele se havia comportado como um jornaleiro, um servo. O pai carinhosamente explicou que ele, assim como o pródigo, não precisava comprar seu direito de filho; ele já era filho: “
tudo o que tenho é seu” (v. 31). A justiça própria leva o homem a distorcer o caráter de Deus e a criticar o próximo. O mais velho se sentia digno. Pensava que ele, sim, merecia a herança, em lugar do mais novo. Que tragédia! Os dois filhos estavam perdidos!

A parábola termina falando sobre o destino, a salvação do filho mais novo, mas deixa uma incógnita em relação ao filho mais velho. Jesus não disse como os filhos se comportaram depois. Para entender a lição que Cristo queria ensinar é importante identificar o público para o qual ele contou a história. Nos versos 1 e 2 do capítulo 15, Lucas diz que se aproximaram de Jesus três grupos: publicanos, pecadores e fariseus/escribas. Os publicanos eram os odiados; os pecadores eram os imorais; e os fariseus/escribas eram os críticos. Esses três grupos que atenderam o convite de Cristo para ouvi-Lo (Lc 14:35), tinham lições a aprender com aquela história.

Jesus queria que seu público terminasse o enredo. Cada um de Seus ouvintes precisava se identificar com um dos irmãos e escolher seu destino. Fica fácil perceber o que Cristo quis insinuar: o filho mais novo representava os publicanos (odiados) e os pecadores (imorais); já o filho mais velho simbolizava os fariseus/escribas daquela e de todas as épocas.

Conclusão
No livro Maravilhosa Graça, Philip Yancey conta uma história que serve de parábola contemporânea do filho pródigo. No capítulo 4, intitulado “O pai cego de amor”, ele relata a história da garota do interior que se revoltou contra os pais, fugiu e foi morar nas ruas de Detroit (EUA). Depois de consumir sua vida nas drogas e prostituição, ela não  mais tinha saúde e foi dispensada do seu “serviço”. Um dia, mendigando, ela decidiu ligar para os pais. Mil perguntas lhe vieram à sua mente. A principal foi: eles vão me aceitar de volta? Para sua frustração, quando ligou para casa, ninguém atendeu, mas ela deixou um recado na secretária eletrônica. O recado foi: se os pais ainda a aceitassem, que pendurassem um lençol branco na janela de seu quarto, porque assim que ela passasse de ônibus na frente de sua casa saberia se poderia descer ou não na rodoviária local. Caso não visse nada na janela, seguiria até o destino final daquela linha, em outra cidade.

A viagem de volta foi longa para ela, que não conseguiu pregar os olhos. Um videotape de sua vida passava em sua mente. Ao chegar à cidade natal, passou pelas ruas que lhe foram muito familiares na infância, mas seu coração bateu mais forte mesmo quando dobrou a esquina da rua da casa dos seus pais. Teriam eles deixado o lençol na janela? Para sua surpresa, não havia apenas um lençol na janela, mas vários, inclusive alguns panos espalhados pelo jardim e nas demais janelas. Na rodoviária local, munidos de cartazes e bexigas, vários familiares, além dos pais, a aguardavam. Assim como na parábola contada há dois mil anos, houve festa, porque a filha que estava morta reviveu!

A lição de Lucas 15 é simples, clara, profunda, desafiadora e confortadora. Que ela abençoe você e sua igreja!


1. Knight, George R. Visão Apocalíptica e a Neutralização do Adventismo (CPB: 2010), p. 48.
2. Ver Dorneles, Vanderlei, em “A centralidade de Cristo”, Revista Adventista, novembro de 2010, p. 8-11. Disponível em www.revistaadventista.com.br.
3. Ver Stencel, Renato, em “Minneapólis 120 anos depois”, Revista Adventista, novembro de 2008, p. 8-10. Disponível em www.revistaadventista.com.br.
4. Os comentários deste tópico até a conclusão foram extraídos de Morris, Leon L. Lucas: Introdução e Comentário (Vida Nova: São Paulo, 1983), p. 223-230.
5. Yancey, Philip D. Decepcionados com Deus (Mundo Cristão, São Paulo: 2004), p. 103-136.

Wendel Lima  -  Graduado em Jornalismo e Teologia - Editor da revista Conexão JA






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