domingo, 9 de outubro de 2011

Unidade do evangelho (comentário ao estudo nº 03)




No comentário da lição anterior, vimos que as acusações contra o apóstolo Paulo eram as seguintes:
(1) tudo o que Paulo sabia sobre o evangelho, ele aprendeu com outros líderes da igreja e
(2) ele distorceu o que lhe foi ensinado.
Em Gálatas 1:11-24, o apóstolo respondeu à primeira acusação ao mostrar que o próprio Cristo lhe revelou o evangelho. Em Gálatas 2, Paulo responde à segunda acusação.

Resumo: 
Os oponentes do apóstolo diziam que o “evangelho de Paulo” era apenas a opinião pessoal dele e que ele distorcia completamente o ensino da igreja. Em Gálatas 2, Paulo respondeu a essa acusação. Ele mostrou que os mais importantes líderes da igreja – Pedro, Tiago e João – endossaram plenamente o que ele ensinava a respeito do evangelho.

Paulo é aceito pelos apóstolos
Em obediência a uma revelação divina, Paulo se dirigiu a Jerusalém (Gl 2:1, 2) para falar com os apóstolos. Existem boas razões para crer que essa reunião é a mesma descrita em Atos 15, conhecida como o Concílio de Jerusalém. Como já vimos, esse concílio foi convocado porque alguns ensinavam que, se os gentios não fossem circuncidados, não poderiam ser salvos (At 15:1).

Nessa reunião, Paulo apresentou a Pedro, Tiago e João “
o evangelho que [pregava] aos gentios” (Gl 2:2).1 Paulo defendia que a fé em Cristo, e não a circuncisão, era a única exigência para ser salvo. Caso houvesse dúvidas sobre o que exatamente era ensinado por Paulo, esse teria sido o momento para que tudo fosse esclarecido. Teriam os líderes da igreja discordado de algum detalhe da teologia do apóstolo? Ou a teriam rejeitado completamente?

Por meio de três atitudes tomadas no Concílio de Jerusalém, Pedro, Tiago e João mostraram claramente que estavam do lado de Paulo:

1. Alguns “falsos irmãos” queriam obrigar o gentio Tito a ser circuncidado (v. 4), mas os líderes da igreja se opuseram a essa ideia (v. 3). A posição dos apóstolos foi tão firme que, por fim, Tito não foi circuncidado.

2. Depois que Paulo lhes apresentou o que ensinava aos gentios, Pedro, Tiago e João não lhe “acrescentaram nada” (v. 6). O evangelho proclamado por Paulo era completo – era o único evangelho, o mesmo ensinado pelos demais apóstolos. Os líderes da igreja endossaram seu ensino, “
nada tirando nem acrescentando à sua mensagem”.

3. Pedro, Tiago e João reconheceram que Deus havia concedido a Paulo a “graça” do ministério apostólico e lhe “
estenderam a mão” em sinal de harmonia (v. 9). Deus escolhera Paulo para anunciar o evangelho aos gentios "assim como" escolhera Pedro para anunciá-lo aos judeus (v. 7, 8). Paulo e Pedro tinham públicos, métodos e ênfases diferentes, mas apresentavam a mesma mensagem – o único evangelho.

Com esses argumentos, Paulo respondeu à acusação de que teria distorcido o evangelho ensinado pelos apóstolos. Ele mostrou que a realidade era o oposto: seus oponentes é que discordavam do ensino dos líderes da igreja!

Paulo versus cristãos judeus?
Ao ler os relatos de Atos 15 e Gálatas 2, alguns podem concluir que o conflito fosse o seguinte: de um lado, Paulo, praticamente sozinho, lutando contra a ideia de que os gentios precisavam ser circuncidados; de outro lado, quase todos os cristãos judeus, querendo impor seus costumes aos gentios. Alguns chegam a pensar que essa foi a situação durante toda a vida de Paulo.

Mas essa imagem não corresponde à realidade. Na época dos apóstolos, multidões de judeus estavam constantemente aceitando Jesus como o Messias. (At 9:31, 35; 14:1; 16:5; 21:20). Isso incluía “
grande número de sacerdotes” (At 6:7). Mas quem exigia que os gentios fossem circuncidados eram “alguns homens” (At 15:1), “alguns” fariseus (v. 5), “alguns falsos irmãos” (Gl 2:4).

Não devemos imaginar que a maioria dos cristãos judeus se opusesse ao ensino de Paulo. Em realidade, nesse grupo havia sempre uma minoria que fazia muito barulho e espalhava boatos a respeito de Paulo entre a comunidade cristã judaica (At 21:20, 21). As acusações eram quase sempre levantadas por judeus não cristãos (At 21:27, 28; 23:12). No entanto, certamente os cristãos judeus em geral seguiam o pensamento de Pedro, Tiago e João, os líderes da igreja.

O que havia de mal na circuncisão?

Ao ver as duras palavras de Paulo contra a circuncisão, alguns podem chegar a conclusões equivocadas. De fato, “seria um erro supor que Paulo era contrário à circuncisão em si” (Lição de Adultos, segunda-feira). Três vezes em suas cartas, o apóstolo afirmou que, se não existe virtude na circuncisão, tampouco há no fato de não ser circuncidado (Gl 5:6; 6:15; 1Co 7:18, 19).

Posteriormente, muitos cristãos passaram a considerar a circuncisão como errada em si mesma. O Concílio Ecumênico de Florença, ocorrido em 1442, advertiu que ninguém deveria praticar “a circuncisão, seja antes ou depois do batismo, pois, coloquem ou não [!] sua esperança nela, não pode ser observada sem a perda da salvação eterna”. Essa posição extremista não está de acordo com o ensino de Paulo. Se o problema fosse a circuncisão em si mesma, Paulo teria sido hipócrita e legalista ao circuncidar Timóteo (At 16:3).

Então, o que existia de mal em exigir que os gentios fossem circuncidados? Paulo (apoiado pelos demais apóstolos) se opôs a isso por duas razões:

1. No Antigo Testamento, a circuncisão era o sinal de que a pessoa passava a fazer parte de Israel, o povo da aliança (Gn 17:10, 14). Ao exigir que os gentios fossem circuncidados, os oponentes de Paulo estavam dizendo que, para ser salva, uma pessoa precisava entrar para o povo de Israel. Isso era verdade no tempo do Antigo Testamento, e Deus aceitou muitos gentios como parte de Israel (Is 56:3-7).

Mas a situação mudou com a vinda de Cristo. As distinções étnicas foram desfeitas quanto à salvação, e todos aqueles que aceitam a Jesus – judeus e gentios – se tornam parte do povo de Deus (Gl 3:28, 29; 6:16; Ef 2:11-19; 1Pe 2:10). Exigir a circuncisão de gentios seria um retrocesso no tempo. Antes mesmo do Concílio de Jerusalém (At 15), Deus já havia mostrado que os gentios não precisam ser circuncidados para fazer parte de Seu povo (At 2:5, 37-39; 8:4-6, 12-17; 10:1, 44-48; 11:17, 18).

2. Como veremos nas próximas semanas, o objetivo de Gálatas não é mencionar quais mandamentos do Antigo Testamento não precisam ser obedecidos pelos gentios. Paulo não se opôs aos rituais do templo nem a qualquer outro aspecto das leis cerimoniais. Isso não significa que elas devam ser guardadas, mas simplesmente que o propósito de Gálatas não é distinguir entre leis morais e cerimoniais, nem mesmo condenar tradições judaicas não bíblicas.

O grande problema dos oponentes de Paulo foi acreditar que, pela obediência à lei de Deus, teriam seus pecados perdoados e seriam aceitos por Ele. Em outras palavras, alcançariam a justificação. Para eles, a circuncisão era a porta de entrada para fazer parte do povo de Deus, e a obediência era o caminho (Gl 5:3, 4). Paulo não podia admitir a circuncisão nem a obediência a qualquer outra parte da lei (inclusive aos Dez Mandamentos) como meio de justificação.

A incoerência de Pedro

Gálatas 2:11-14 descreve uma situação bastante inusitada. Enquanto Pedro estava longe dos cristãos judeus, comia livremente com os gentios, mas, quando chegou um grupo de cristãos judeus, ele se afastou dos gentios (v. 12, 13). O que o levou a agir assim?

O Antigo Testamento apresenta várias leis relacionadas à purificação (Lv 11–15). Elas tinham o objetivo de promover santidade e saúde (Lv 11:43-45), conceitos inseparáveis no ensino bíblico. Mas, no tempo de Jesus, muitos judeus haviam desenvolvido tradições sobre purificação. Eles chegavam ao extremo de dizer que nenhum judeu deveria se associar a gentios incircuncisos, entrar na casa deles, nem se assentar à mesma mesa para comer juntos. Ao entrar em contato com o impuro (gentio), o puro (judeu) se tornaria impuro.2 É isso o que está por trás do encontro de Pedro com Cornélio (At 10:27-29). Vale lembrar, porém, que essas não são leis prescritas pelo Antigo Testamento!

A mesma tradição explica o comportamento de Pedro. Antes da chegada de alguns cristãos judeus, Pedro vivia “como gentio” (Gl 2:14), ou seja, se misturava aos gentios e comia com eles. Quando chegou o tal grupo, Pedro se afastou deles, “temendo” os cristãos judeus (v. 12). Ao fazer isso, era como se ele estivesse exigindo que os gentios se tornassem judeus (vivessem como judeus, ou seja, se circuncidassem), para que voltasse a se relacionar com eles. Os gentios seriam cristãos de segunda categoria.

O mais incrível é que Pedro já compreendia plenamente a verdade sobre o assunto! Na história de Cornélio, o próprio Deus havia mostrado a Pedro que não havia nenhum problema em se misturar com gentios (At 10:1-11:18). E, como já vimos, Pedro concordava plenamente com o ensino de Paulo sobre a igualdade entre judeus e gentios. Foi essa atitude tão incoerente da parte de Pedro – uma verdadeira “hipocrisia” (Gl 2:13) – que levou Paulo a censurá-lo publicamente e usar palavras tão duras (v. 14-21). Pedro acreditava de uma forma, porém agia de outra.

Aplicações práticas

1. A autoridade do corpo de Cristo  “Apesar de Paulo ter sido ensinado pessoalmente por Deus, ele não mantinha ideias extremadas de responsabilidade individual. Embora buscando de Deus a guia direta, estava sempre pronto a reconhecer a autoridade do corpo de crentes unidos em comunhão da igreja [Gl 2:2, 9, 10].”3

Deus não Se esqueceu de Seu povo, escolhendo uma pessoa isolada aqui e outra ali, como as únicas dignas de receber a verdade. Não dá a ninguém luz contrária à fé estabelecida do corpo de crentes. [...]A única segurança para nós está em não recebermos nenhuma nova doutrina, nenhuma nova interpretação das Escrituras, antes de submetê-la à consideração dos irmãos experientes. Apresente-a a eles, com espírito humilde e pronto para aprender, orando fervorosamente. E se eles não virem luz nisso, atenda ao juízo deles, porquena multidão de conselheiros há segurança’ (Pv 11:14).”4

2. Diversidade nos métodos, unidade na mensagem – Paulo e Pedro tinham públicos, métodos e ênfases diferentes em seu ministério (Gl 2:7, 8). “
Há necessidade de pessoas que orem a Deus pedindo sabedoria e que, sob a orientação divina, ponham nova vida nos antigos métodos de trabalho. Elas devem imaginar novos planos e métodos modernos de despertar o interesse dos membros da igreja, alcançando os homens e as mulheres do mundo.”5

Novos métodos precisam ser introduzidos. O povo de Deus tem que despertar para as necessidades da época em que vive. Deus tem pessoas que Ele chamará para Seu serviço – pessoas que não farão o trabalho da maneira sem vida com que tem sido conduzido no passado.”6

3. O perigo de cultuar tradições humanas – Pedro errou em seguir tradições humanas que excluíam os gentios da convivência com judeus (Gl 2:11-13). “O fato de não haver controvérsias nem agitações entre o povo de Deus não deve ser olhado como prova conclusiva de que ele está mantendo com firmeza a sã doutrina. Há razão para temer que não esteja discernindo claramente entre a verdade e o erro. Quando não surgem novas questões em resultado do estudo das Escrituras, quando não aparecem divergências de opinião que instiguem as pessoas a examinar a Bíblia por si mesmas, para se certificarem de que possuem a verdade, haverá muitos agora, como antigamente, que se apegarão às tradições, cultuando nem sabem o quê.”7

4. “Todos tropeçamos de muitas maneiras” (Tg 3:2) – Isso é verdade mesmo para os cristãos mais espirituais e maduros como Pedro (Gl 2:11-13). Perceber isso deve nos levar à humildade, porque, sem Jesus, nada podemos fazer (Jo 15:5). Antes de criticarmos o erro de alguém, devemos nos lembrar de que nós estamos sujeitos a cometer o mesmo erro e outros piores (1Co 10:12). Se ainda não o fizemos, foi unicamente por falta de oportunidade ou pela graça de Deus.

5. Encorajando e admoestando os irmãos na fé – No momento certo e de maneira gentil, podemos aconselhar aqueles que erraram (Gl 6:1). A repreensão de Paulo a Pedro (Gl 2:11) não foi uma explosão de ira, mas uma advertência cheia de amor e preocupação feita a alguém que conhecia o erro que estava cometendo. A atitude de Paulo não contradiz a orientação de Jesus (Mt 18:15-20). Erros particulares devem ser tratados de maneira privada, mas questões públicas precisam ser resolvidas publicamente. Por nossa vez, quando recebemos uma correção, não devemos demonstrar revolta e arrogância, mas humildade e sabedoria para aceitar o conselho (Pv 15:32; 27:5).

6. O poder de nossa influência na comunidade – Quando Pedro se afastou dos gentios, outros cristãos judeus, e “até Barnabé”, seguiram seu mau exemplo (Gl 2:13). Todos nós vivemos em sociedade. Somos o corpo de Cristo, e não entidades desconectadas (1Co 12:12, 27). Nossos erros afetam outras pessoas, mesmo quando não percebemos isso. Mas, felizmente, também as coisas boas que fazemos têm influência positiva sobre outros (Mt 5:13-16; Fp 1:12-14).

Como cristãos ocidentais, somos inclinados a focalizar nossa própria espiritualidade. Costumamos perguntar: Estou lendo a Bíblia em minha devoção pessoal? Estou passando tempo com o Senhor em oração? Essas atividades são realmente muito importantes. Mas somos inclinados a menosprezar a importância da comunidade. [...]

Possuímos a tendência de abandonar uma igreja por razões supérfluas e nos unir a outra igreja por interesses próprios. [...] Não devemos nos reunir com outros cristãos primariamente para desenvolver nossas próprias habilidades e buscar a exibição, mas para ajudar no crescimento espiritual de outros. Devemos perguntar a nós mesmos: ‘Como posso servir os outros no corpo de Cristo? Como posso encorajar meus irmãos e irmãs na fé? Como posso influenciá-los a andar fielmente com o Senhor?”8

1. Todos os textos bíblicos são extraídos da Nova Versão Internacional.
2. Veja Colin House, “Defilement by Association: Some Insights from the Usage of koinos in Acts 10 and 11”, Andrews University Seminary Studies 21 (1983), p. 143·153, disponível em http://www.adventistarchives.org/docs/AUSS/AUSS19830701-V21-02__B/index.djvu?djvuopts&page=35
3. Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, p. 200.
4. Idem, Testemunhos Seletos, v. 2, p. 103-105.
5. Idem, Evangelismo, p. 105.
6. Ibid., p. 70.
7. Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 2, p. 311, 312.
8. Thomas R. Schreiner, Galatians, Exegetical Commentary on the New Testament, v. 9 (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2010), p. 148, 149.

Autor deste comentário Pr. Matheus Cardoso Editor-assistente dos livros do Espírito de Profecia na Casa Publicadora Brasileira




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